O Winter Palace é um luxuoso hotel às margens do Nilo, em Luxor. Não passa despercebido por quem cruza sua fachada. Foi nele que revelaram ao mundo a descoberta dos tesouros de Tutancamon. Ali, Agatha Christie começou a escrever um de seus livros mais famosos “Morte no Nilo”. Nele, seu famoso personagem, Poirot, precisa resolver um assassinato durante um casamento num cruzeiro luxuoso.
Os cruzeiros pelo rio Nilo se tornaram, no início do século XX, a grande viagem dos sonhos, tal qual uma lua-de-mel nas Maldivas hoje em dia. Não só a escritora, mas tantas outras celebridades, artistas, cientistas, políticos e expoentes da sociedade estiveram nessas luxuosas embarcações, que acabou por se tornar um dos passeios mais clássicos do mundo. Além disso, os preços exclusivos para a alta sociedade são coisa do passado, turismo de massa é mais rentável. Hoje, é um sonho possível pra qualquer orçamento.
Eu sonhei com essa viagem também.
Os cruzeiros, todos eles, fazem o trajeto entre Aswan e Luxor. O mais comum dura 3 noites e 4 dias e, no sentido oposto, 4 noites. Aswan fica mais ao sul que Luxor em relação ao Cairo. Pode-se chegar lá num vôo de 1:30 hs ou numa viagem de trem noturno. Eu nunca havia estado num trem antes, dormir em um então, massa demais.
Trem Noturno
O guia dos passeios comprou os tickets e nos escoltou até o terminal, no Cairo. Era um terminal bem grande, com muitos trens, muitos turistas. Havia um menino com um quepezinho na porta do trem que levava as bagagens até a cabine e, sem dizer uma palavra, mostrou como funcionava tudo. A torneira, abriu pra mostrar que saia água, o armário, mostrou abrindo a porta.
A certa hora ele aparece com um carrinho pra servir uma refeição, pouco depois, volta pra preparar as camas que ficam dobradas. Pela manhã, o café é servido e, as camas, reposicionadas. É até confortável, uma regular noite de sono. Te dá um tempo livre pra mexer nas fotos da viagem, ler o guia ou conversar. Não existia “mexer na internet” naquela época, acredito que ainda hoje não exista. Pela manhã, pode-se passar um tempo vendo a vida pela janela, os trabalhadores no campo, palmeiras, casebres, crianças. Quase como deve ter sido nos últimos milhares de anos, exceto pelos tratores e postes de luz. Finalmente, uma última vez, o rapaz do quepe com a mesma animação da noite anterior, vem buscar as malas e a gorjeta.
Aswan
Temos aqui uma cidade bem diferente daquele centro amontado da capital. É uma cidade portuária espaçosa e ensolarada, de onde saem os cruzeiros. E são muitos, dezenas deles. Além de outros inúmeros barcos à vela, chamados falua, que ficam atracados uns ao lado dos outros. O passeio neles pra ver o pôr-do-sol é o mais tradicional. Também tem um calçamento largo e agradável pra se caminhar margeando o rio. E tem os passeios de charrete, que nos seguem se oferecendo e não parece haver nada que os faça desistir. Capaz de te seguirem até o rio desaguar no mar.
Você é embarcado mas o navio só sai na manhã seguinte. Isso te dá o dia todo pra fazer os passeios que a cidade oferece ou ir até Abu Simbel.
Visitei a famosa represa de Aswan, construída pelo general Nasser que modernizou o Egito. A represa acabou com as cheias do Nilo e, tudo que aprendemos sobre ele na escola, ficou sendo passado. É só uma represa grande com muito concreto. Vale pela importância histórica, não pelo visual.
Também visitei a Ilha de Philae. Essa, um passeio importante de se fazer. Chega-se de barquinho à motor e a ilha tem um templo dedicado à deusa do amor, Ísis. É considerado o mais bonito do Egito, ele mistura a arquitetura helênica e cria aquele contraste de hieróglifos com colunas dóricas. Também é importante porque foi ali que a língua egípcia morreu. Foi onde os hieróglifos foram esculpidos pela última vez. Era uma língua em extinção e, as últimas pessoas que a conheciam, viviam ali.
Foi ali também que os árabes resumiram pra mim sua filosofia de vendas: do nada, um sujeito brotou do meu lado, me segurou pelo braço, e, antes que eu tivesse qualquer reação, sussurrou no meu ouvido: “eu não o que você procura, mas eu tenho o que você precisa”. Ri muito. Não comprei nada.
Abu Simbel
Depois das pirâmides, esse era o meu maior desejo de conhecer. O navio só desatraca após o almoço, então, dá pra fazer a visita acordando às 4hs da manhã, pegando um vôo e retornando no mais tarde, às 11 hs. O aeroporto de Abu Simbel é bem próximo ao monumento de Ramsés II.
Abu Simbel é impressionante tanto pelo monumento em si quanto pela sua história. Esculpido em uma montanha às margens do Rio Nilo, uma imensa imagem de Ramsés II sentado em seu trono, ao lado de sua esposa Nefertiti, saudando as embarcações vindas do Sudão. Servia como uma imensa propaganda, pra quem vinha de fora, de quem é que mandava por ali.
Ficou pra história o quanto Ramsés amou Nefertiti. A tumba, ao lado da dele, é uma grande declaração de amor. Foi venerada como deusa, era influente no governo do marido e morreu jovem.
Quando a barragem estava para ficar pronta, a inundação rio acima engoliria o monumento. Então, num descomunal esforço de engenharia, eles serraram todo o paredão e o carregaram, peça por peça, 60 metros acima. Seria uma vergonha se, 5 mil anos depois, nossa civilização não fosse capaz de realizar esse feito.
Em duas datas do ano, os primeiros raios de sol da manhã, entram pela porta e iluminam, nos fundos, as estátuas dos deuses, deixando as dos mortos no salão, nas sombras. Um negócio meio mágico. E, até a angulação pra manter esse efeito, foi mantida na reconstrução.
Cruzeiro Pelo Rio Nilo
Contratei o cruzeiro através de um site e o acordo foi fechado através de e-mails. Hoje em dia devem haver formas mais práticas de se fazer isso. Os roteiros são sempre os mesmos e a diferença se faz pelo conforto. O pacote incluía um guia em espanhol, encarregado de acompanhar somente a mim e meu pai.
Era um rapaz gente boa, mas que não saiu do nosso lado por nada. E sempre que tinha oportunidade contava sobre a vida difícil que levava e como ele precisava juntar dinheiro pro dote, pra poder se casar. Me lembro de ser uma situação bem complicada, ele precisar de um valor alto pro casamento e a noiva ficar esperando até que consiga o dote. Ao mesmo tempo, a família insistindo pra ele resolver a própria vida logo, sair de casa e constituir família. É um belo jeito de pressionar o cara a cair no mundo e se virar. “Havia muchos cocodrilos”, ouvi ele repetir isso dezenas de vezes. Até hoje eu acho divertido lembrar.
O navio tinha piscina, um deck enorme, bar e varanda no quarto. É uma das coisas mais bonitas mesmo ficar observando, da varanda do quarto, o silêncio do barco cortando o rio, num fim de tarde, com toda a paisagem num tom dourado.
As paradas de visitação são, como em todo pacote turístico, programadas e cronometradas. As refeições também eram servidas na hora exata e o resto dos passageiros, todos alemães, pareciam uns malucos de escola pública, correndo feito uns doidos pra cima da comida quando abriam as portas. Até existe entretenimento a bordo, com músicos e danças após o jantar. Mas os alemães idosos bêbados pareciam fazer um esforço enorme pra não deixar o ambiente agradável.
No mais, a experiência é gratificante. Me lembro menos dos detalhes dos sítios que visitei e mais da sensação de navegar pelo rio.
LUXOR
Ah, Luxor! Se tem uma cidade onde você poderia usar roupa cáqui com chapéu de safari, é aqui. Tem monumentos pra todos os lados e a cidade se mistura muito entre locais, turistas e estátuas de pedra.
Ela é dividida ao meio e, numa margem, uma região mais desenvolvida e moderna, com os melhores hotéis. Na outra, uma região mais pobre, bem simples, com pousadas mais familiares. Escolhi ficar deste lado porque devo ter lido que a experiência era mais imersiva – e foi mesmo. A pousada ficava num bairro com ruas de terra, cheio de crianças jogando bola, mulheres carregando cestos na cabeça, poucos turistas andando à esmo e uma agradável sensação de segurança.
Na pousada havia um grupo de uns oito hóspedes que estavam num curso de língua árabe. Lembro que alguém os apresentou a mim. Havia uma mulher que era professora na Europa, tinha um combatente do exército inglês, um americano… estavam ali a algumas semanas já. Imaginei que escolher uma pequena pousada discreta e fazer aulas no pátio longe das vistas de todo mundo deveria ter um motivo. Houve uma celebração de despedida do curso e me chamaram pra participar, bater palmas no ritmo da música, rir das tentativas de cada um fazer um passo árabe e fumar sheesha.
Estávamos no meio da Copa Africana e houve um jogo entre Egito e Marrocos. Um local do hotel me levou num bar à noite pra assistir o jogo e tomar chá. Porque é assim que se diverte lá, no mundo árabe: você vai num bar apenas com homens e toma chá quente. Mas foi legal ver os caras indignados com as trapalhadas do zagueiro da seleção, que chamam de “Os Faraós”. O Egito ganhou.
Luxor merece alguns dias, num hotel com piscina, um tempo pra descansar e bastante pra explorar. Há museus específicos, como o da mumificação, da medicina… Essa é a cidade no Egito que me deixou saudades – eu voltaria.
Todas as visitas lá são incríveis. Comecei pelo templo da rainha Hatshepsut. Essa é protagonista de uma das grandes histórias do Egito Antigo. Ela se tornou rainha, tirou a coroa do bebê que a usava por direito e se tornou faraó. Foi mãe adotiva de Moisés. As estátuas a retratam com uma barba falsa. Descobriram sua múmia por causa de um dente e definiram até a idade e a causa da morte, aos 50 anos, de câncer. Foi uma das grandes figuras femininas da história.
O mausoléu deve ter levado décadas pra ficar pronto – como tudo lá. Era arborizado, decorado, colorido e fresco. Até hoje existem as raízes no solo de árvores trazidas de longe pro jardim.
Também foi o palco de um ataque terrorista que lançou a indústria turística do país numa crise imensa. Em 97, um ônibus com turistas europeus e japoneses foi invadido por terroristas armados de metralhadoras, logo após estacionar em frente ao monumento. Foram massacrados, quase 70 mortos.
Os templos de Karnak e Luxor são o mais próximo que podemos chegar dos cenários que vemos nos filmes. Fachadas, inscrições, salões, colunas, estátuas, está tudo lá, pra você imaginar o quão incrível deve ter sido na época. Aprendi como eram feitas as inscrições nas pedras, como eram coloridas, o que significavam. Qual era a lógica nos símbolos e o que era pra devoção espiritual e o que era pra administração faraônica. Vi como eram contadas as colheitas e as estações, uma lista de utensílios médicos, um receituário, leis e repartições do governo, tudo talhado nas pedras.
Luxor foi a capital do Egito Antigo e chamava-se Tebas. Karnak era o maior templo religioso da época, para o deus Amon-Rá.
O vale dos reis é um enorme campo arqueológico à beira de paredões e montanhas, onde todo ano fazem novas descobertas. As tumbas e cavernas abertas ao público dividem espaço com os sítios arqueológicos ainda sendo investigados. Eu passei ao lado de um sujeito de camisa e chapéu, cheio de pessoas em volta, que parecia ser alguém importante. Tratava-se de Zahi Hawass, o egiptólogo mais famoso do mundo. E continua sendo até hoje. Ele parece o Indiana Jones num dia de trabalho sem nazistas o perseguindo.
Existem diversas tumbas que podem ser visitadas, umas com acesso permanente, outras, sazonais. Como tudo no Egito, não ter alguém junto de você pra lhe explicar o que se está vendo, torna tudo muito repetitivo. Acaba que todo mundo opta por visitar uma ou duas tumbas apenas, e ficam sempre com as mesmas, entre elas, a com os desenhos mais preservados já encontrada. Não são permitidas fotos e, nossa, como é colorido!
No vale dos reis também fica o mais famoso passeio de balão do Egito, mas era bem, bem caro.
Dahab
A península do Sinai é um lugar complicado, cheio de tretas e confusões. É onde o Egito faz divisa com Israel e a faixa de Gaza. Onde construíram o Canal de Suez, onde houve a Guerra dos 6 dias contra Israel, onde Moisés recebeu a tábua dos 10 mandamentos, onde ele falou com Deus através das sarças ardentes. E também é onde fica a cidade de veraneio mais famosa do Egito, Sharm-el-Sheik, cheia de resorts à beira-mar e um dos pontos de mergulho mais famosos do mundo, o “Blue Hole”, no mar vermelho.
O vôo de Luxor para Sharm virou história pra contar. Havia uma tempestade de areia no deserto, nunca vi nada igual. Uma imensa parede gigantesca laranja que ia do chão e se unia ao céu. Parecia coisa de CGI de filme. E ficava cada vez maior. Pensei “o piloto vai ter que dar a volta, não deve ter como voar ali”. Comecei a me perguntar se o piloto realmente sabia o que estava fazendo quando o avião entrou numa nuvem amarela sem visão nenhuma, e começou a chacoalhar. Fiquei apavorado com a idéia de que “areia vai corroer os rolamentos da turbina desse negócio”. Não corroeu. Ou ele deve saber mais sobre isso do que eu, ou deu sorte.
Dahab fica a cerca de 1 hora de carro de Sharm el Sheik. Eu li no Lonely Planet que era um lugar agradável, uma vila de beduínos, longe da agitação chique de Sharm. Achei exótico o bastante pra merecer a visita. Dahab foi um pequeno tesouro. Uma orla cheia de restaurantes sem mesas, só almofadões pra você se recostar e comer sentado no chão.
O Blue Hole era logo ali e os mergulhadores entram na água andando. O Monte Sinai fica nas suas costas e a vibe do lugar, quase sem turistas e aquele clima relaxado, me fizeram sentir que estava num pequeno paraíso escondido.
A subida ao Monte Sinai é dos passeios mais icônicos, começa a noite e termina ao nascer do sol, no topo do monte. Tem passeios de camelo, de quadriciclos e um centrinho com lojinhas dos mais agradáveis que visitei no país.
Numa das noites em que passei pelas lojas, elas estavam vazias, quase ninguém estava trabalhando, abandonadas mesmo. Todo mundo estava em frente as televisões dos bares, assistindo Egito e Argélia, nas semifinais. Argélia é a Argentina do Egito. E o Egito venceu por 3 a 2.
Fiz uma refeição com meu pai, nesses almofadões, pedimos um assado típico, feito num buraco no chão e enrolado em papel alumínio. Éramos os únicos no lugar e tocaram música brasileira na caixa de som. Conversamos por vídeo com minha mãe, falamos sobre todas as coisas que vimos, rimos das trapalhadas. Ouvimos o mar. Foi uma ótima noite. Especial mesmo. Quando nos serviram, trouxeram um borrifador junto. “Pra quê isso? Limpar as mãos?”. “Não, não, já você vai ver.”.
Levou 1 minuto. Estávamos rodeados por gatos. Muitos gatos. Primeiro 10, depois 20, depois mais. E eles se aproximavam, subiam no colo, no ombro, iam direto na comida. Pra isso o borrifador. Era só água, servia pra espantá-los. E funcionava. Não tinha pernilongos, mas tinha miado de gado.
Dahab foram os dias mais tranquilos e relaxantes da viagem. O constante entra e sai de monumentos e o permanente assédio dos comerciantes árabes, acabam por minar a paciência aos poucos. Fui muito grato por essas mini-férias dentro das férias. Comprei, numa loja de ouro, um pequeno presente. É uma placa de prata onde se escreve o nome dos faraós, mas com o meu nome gravado, em hieróglifos. Virou um amuleto, símbolo dessa oportunidade que tive em ter todo esse tempo entre pai e filho. Está no meu pescoço há 13 anos.
Olhando um mapa, por acaso, meu pai reparou que Jerusalém ficava a algumas horas de nós. “Poxa Rodrigo, vir de tão longe e não conhecer?”. Eu não havia lido nada a respeito de Israel, nada.
Fomos.
Rodrigo Okamoto de Melo