A península do Sinai é dos lugares mais tensos do mundo. Começou com Deus escrevendo as regras pra acabar com a bagunça que era isso aqui.
Daí pra frente foi só pra trás. Guerras, terrorismo, disputas.
Os fatos bíblicos ocorridos aqui acabaram por fazer esta região ser mais que planícies e morros desérticos. Tem o canal de Suez, que desencadeou uma guerra entre Israel e Egito – que se repetiria anos depois, na Guerra dos 6 dias. Teve a criação da faixa de Gaza e a instalação de células terroristas em suas planícies. Ou seja, essa região nunca saiu por muito tempo das manchetes dos noticiários mundiais.
A perseguição árabe ao povo judeu se agravou com criação do Estado de Israel. A faixa de Gaza se tornou um ponto de conflito bélico intermitente de um lado e de outro. Muito da ajuda militar que Gaza recebe vem em forma de contrabando através de túneis e rotas secretas que passam pelo território egípcio, no Sinai.
Também houve a instalação de centros de treinamento terrorista, até do Estado Islâmico. Vez ou outra, alguns desses malucos dão as caras no litoral, onde fica a faixa turística da península, com seus hotéis e pousadas à beira do Mar Vermelho.
Por conta disso, essa região já foi, em diversos momentos, considerada a mais perigosa do mundo para turistas, sendo desaconselhada a circulação independente, sem escoltas ou em grupos oficiais. Por volta de 2010, havia relatos de sequestros frequentes e de repetidos momentos onde as fronteiras israelenses eram fechadas.
Só em Dahab, 23 turistas foram mortos em 2006 num atentado.
Novamente, em 2009 e 2014, novos incidentes terroristas com vítimas. E, entre um e outro, estava eu lá.
As vantagens de ser ignorante
Eu tinha uns poucos dias de folga antes de retornar num vôo para o Cairo, e estávamos, eu e meu pai, descansando em Dahab. O vilarejo beduíno à beira do Mar Vermelho foi um dos lugares mais legais que já visitei. Tenho uma camiseta de lá até hoje e que nunca uso, pra não estragar.
São boas as opções de passeios pra se fazer lá – andar de quadriciclo, passear de camelo, visitar o mosteiro de Santa Catarina ou subir o monte Sinai. Estávamos vendo o que fazer, recostados num almofadão ao ar livre, num dos vários restaurantes à beira-mar – que estavam vazios (nem imaginava o porquê) – cercados de gatos, quando mostrei pra ele um mapa da região. E Jerusalém estava logo ali, a uns 5 cm de distância. “E aqui? Não dá pra ir?”. Olhei no Lonely Planet que eu já havia virado do avesso. Estávamos a 2 horas da fronteira, outras 4 hs de Jerusalém. Meu pai me olhou, como que perguntando “poxa, vir até tão perto e não ir até lá?”.
Meu pai tinha razão, era a Terra Santa, seria incrível estar lá.
Eu não havia lido nada a respeito, não havia pesquisado, e, se fôssemos, seria tudo de última hora, sem planejamento. O guia apenas mencionava um ônibus que saía de Dahab até Taba, a cidade de fronteira com Israel.
No terminal rodoviário, no dia seguinte, não havia o tal ônibus naquele horário. Soube disso perguntando para uns motoristas sentados num banco. No mesmo instante apareceram uns taxistas se oferecendo pra nos levar. Eu queria apenas o ônibus, sabia que tentariam me cobrar muito além do justo. Porém, ter feito check-out no hotel e estar com toda a bagagem ali, me tornou uma presa fácil. Deveria ter ido antes, sozinho, apenas pra me informar e pechinchar.
Um motorista que não falava inglês conseguiu me mostrar que nos levaria até a próxima cidade, onde havia outro terminal, no qual eu poderia tomar o ônibus. Cobrou uma fração do valor. “Deal!” – e nos apertamos as mãos.
O taxista – eu nunca mais vou esquecer desse cara – era um grandalhão, com roupa de árabe, num carro velho que lembrava uma Belina. Colocou nossas coisas no porta-malas e saímos.
Uns 30 ou 40 minutos depois chegamos ao vilarejo. Ele estacionou o carro, disse algo como “já volto” e atravessou a rua. Era mesmo um terminal rodoviário, haviam vans estacionadas num pátio. Ele tinha ido perguntar sobre o tal ônibus. Aqui já deu pra notar o tamanho da minha ingenuidade. Eu era muito passivo, me deixava ser levado pelas situações esperando que elas se resolvessem da melhor forma, sozinhas. Eu deveria ter descido e ido junto. Deveria ter sido enérgico em decidir como queria
conduzir as coisas. Mas não, eu só dizia “ok, ok”. Quando voltou, disse não haver mais ônibus. Nós teríamos que voltar, ou, ele nos levaria até a fronteira, pelo mesmo valor que eu recusara no princípio.
Discuti rapidamente com meu pai. A situação não me agradou, foi uma cilada na qual eu aceitei cair. Agora, recusar e voltar seria um enorme desperdício de tempo e dinheiro, então, concordamos.
Logo percebi por que teria mesmo sido difícil achar qualquer ônibus que fosse praquelas bandas: não tem nada lá, nada. Uma estrada sinuosa, mar de um lado, acostamento que é só pedregulho, montanha do outro.
Nenhuma vegetação, nenhum ser humano. De tempos em tempos você passa por um hotel, pousada ou lugares pra turistas que querem isolamento. De resto, é só deserto.
Comecei a me arrepender profundamente da escolha. Eu não sabia que a região do Sinai era perigosa nem que aquele trajeto era totalmente desaconselhável. Ainda sim, a estrada era tão vazia que causava
desconforto. Bastavam dois sujeitos na pista mandando o carro parar e pronto, eu teria virado estatística e notícia de rodapé.
Comecei a ficar bastante nervoso e o silêncio no carro pesou. O motorista percebeu e começou, a cada 10 quilômetros, me dar um tapa na perna e dizer a única palavra que ele devia saber que eu entenderia – tranquilo, tranquilo – e ria. Sério, ele dava um tapa na coxa e soltava um “tranquilo” espanhol. Aí sim, é que eu me borrei.
Numa certa altura meu pai precisou parar pra urinar. Paramos no acostamento, meu pai desceu. Subitamente, sem aviso, o cara andou com o carro. Meu coração veio na boca. Só pude pensar que ele ia largar meu pai pra trás pra depois me ameaçar, me atirar de um penhasco e ficar com nossas bagagens. Enfrentar um egípcio num deserto não era um bom jeito de encerrar a viagem. Mas, não, ele só tirou o carro da curva pro caso de outro carro vir. Meu pai também assustou, voltou pra dentro do carro correndo antes de se aliviar.
Eu não ia nunca dizer que estava preocupado. Até porque, o tom de voz seria uma pista pro motorista do que poderíamos estar falando. Não queria mostrar insegurança. Precisava sinalizar tranquilidade. Teria sido uma viagem perfeita pra dormir, mas estava tenso, atento, angustiado e a estrada nunca acabava… pá! Outro tapa – “tranquilo, tranquilo”.
Ele nos deixou na fronteira egípcia, com duas horas e pouco de viagem, fez a volta e foi embora.
A fronteira israelense
Uma regra de ouro em viagens internacionais é sempre se atentar para as regras de fronteira. As coisas podem se tornar bem complicadas se você for desleixado e não se antecipar.
Ainda no lado egípcio, a alfândega era um departamento militar com mesas velhas, ventilador de teto lento e máquinas de escrever. Bem naquele estilo em que tudo vai terminar em propina pra desenrolar. Mas,
não, o que se passou foi uma preocupação do funcionário com nossa completa falta de preparo pra fazer aquela travessia. Ele deve ter se surpreendido por termos cruzado o Sinai e aparecido ali, sozinhos, no final da tarde.
Só havíamos nós e, se não pudéssemos atravessar, seria um problema voltarmos. Ele nos explicou que não poderíamos voltar ao Egito, uma vez que cruzássemos a fronteira. Deveríamos ir até Tel Aviv, no consulado egípcio, requisitar o visto de entrada pra voltarmos.
Não me passou pela cabeça todos os problemas burocráticos que poderiam ocorrer: o consulado estar fechado, só atender com agendamento, pedir algum documento que eu não tinha, não fornecer o
visto… só olhei pro meu pai e falei “vamos?”. Acenei com a cabeça pro militar e recebi o carimbo.
O trajeto até a alfândega israelense deve ter uns 100 metros. E o contraste é enorme. O outro lado é moderno, com portas de vidro automáticas e trancas eletrônicas.
Havia um homem grande e muito sério parado na porta. Nos parou e perguntou onde íamos e de onde vínhamos. Deu vontade olhar pra trás e responder “o que você acha?”. Pediu os documentos, analisou
cuidadosamente as fotos. Silêncio entre nós três. “Se for corintiano, não entra”. Hahaha! Eu gargalhei. O cara era brasileiro, filho da mãe, me assustou de propósito. O clima mudou na hora, fizemos várias perguntas pra ele. Era de São Paulo, ouviu o chamado do seu povo, encerrou a empresa que tinha e foi pra lá trabalhar. Tinha mulher, filhos, todos brasileiros. Que loucura, bicho. Disse que estava tudo certo e nos deixou entrar – “só mais uma coisa”, ele disse, “é corintiano?”.
O contraste com a fronteira 100 metros pra trás só aumentou. Dentro do prédio, os soldados eram homens e mulheres. E muito, muito jovens, talvez mais que eu. E todos com metralhadoras à tira-colo e sem nenhuma simpatia. E, se meu pai no Egito era confundido, de forma divertida, com um árabe, isso se repetiu em Israel, só que pro lado ruim. Me colocaram de lado e o revistaram. Pediram pra ele desfazer quase a mala toda.
Fomos admitidos sem quase nenhuma orientação, apenas seguimos adiante, mais umas duas portas de vidros automáticas e estávamos em território israelense.
“Quem aí pode dizer que se experimentou e tinha sabor de snickers?”