CAIRO, EGITO

3,2 mil anos

É surreal imaginar que a civilização humana, que se iniciou 10 mil anos A.C., teve, em um terço desse período, a egípcia como uma de suas protagonistas.

O Egito teve alguns dos registros mais antigos como destino turístico. As pirâmides de Gizé já eram uma atração ainda no mundo antigo. O historiador grego Heródoto esteve lá, 400 e tantos A.C., registrando sua passagem ali.

No final do século XVIII, depois da passagem de Napoleão, que levou cientistas, historiadores e artistas ao Egito, no século XIX ele se torna um dos destinos mais exóticos e desejados pela aristocracia européia. Nessa época, surgem luxuosos e famosos hotéis em Casablanca, Cairo, Luxor. Nos anos 30, Agatha Christie escreveu Morte no Nilo, durante o idílico cruzeiro pelo rio.

Até a década de 90, na era pré-internet, as pirâmides da planície de Gizé eram a imagem mais reproduzida no mundo.

O turismo se tornou a maior fonte de renda do país, com cerca de de 15 milhões de pessoas visitando-o anualmente (mais que o dobro do Brasil). Acabou se tornando um importante um segmento alvo em lamentáveis episódios terroristas. Somado ainda às crises de instabilidade política, derrubaram a procura pelo país em diversos momentos, a um terço disso.

No entanto, a quantidade descomunal de material já publicado a respeito do Egito Antigo, sua presença na história da humanidade, nos currículos escolares, os filmes, documentários e as constantes novas descobertas arqueológicas, garantiram a manutenção do interesse da humanidade pelo país por toda a sua existência. Dito isto, é fato afirmar que, como destino turístico exótico africano e fazendo parte do mundo muçulmano, o Egito é um dos países mais fáceis e estruturados pra se viajar.

Os pacotes turísticos oferecidos pelas empresas de turismo cobrem boa parte do que é essencial no país. Mas é plenamente possível programar a viagem por conta própria, desde que você se permita contratar alguns dos passeios de antemão, pra garantir algum conforto, mas mantendo a sensação de aventura e exploração, que combinam bem com a terra dos faraós.

O ROTEIRO

O Egito foi minha terceira viagem internacional. A primeira havia sido a Argentina. Voltei tão deslumbrado que repeti a viagem no ano seguinte com toda a minha família. “Vocês têm que ir!” eu dizia, “é legal demais”. E descobri, tirando as mesmas fotos da Casa Rosada pela segunda vez, que não era a Argentina que havia me deslumbrado, era viajar. Me convenci de que eu deveria ser capaz de me virar bem em qualquer lugar do mundo. Escolhi, por causa das pirâmides, o Egito.

Tive o privilégio de tornar essa viagem um momento entre pai e filho. Viajamos juntos e eu tinha a responsabilidade de trazê-lo são e salvo de volta pra minha mãe. A dele era garantir que eu não fosse me perder no deserto. Sendo eu inexperiente no exterior e ele não falando inglês, foram duas semanas nos esforçando pra falharmos nisso.

O roteiro foi montado com a ajuda de um dos poucos guias Lonely Planet que eu realmente aproveitei. Consistiu em:

  • Três dias no Cairo.
  • Viagem num trem noturno para Assuã e embarque num cruzeiro.
  • Vôo de bate-e-volta para Abu Simbel.
  • Três dias e duas noites navegando descendo o rio Nilo, desembarcando em Luxor.
  • Duas noites em Luxor.
  • Vôo para Sharm el Sheik e deslocamento para Dahab.
  • Dahab, no deserto do Sinai, era o ponto final, com alguns dias livres e, finalmente, vôo de volta ao Cairo.

CAIRO

É curioso lembrar agora como a minha imaginação havia ido longe sobre o que esperar do país. Eu imaginava o aeroporto num deserto, com areia entrando pela porta.

O Cairo foi a minha primeira grande lição de história, geopolítica e geografia: os contrastes com as modernidades dos tempos atuais, os problemas sociais, a forte presença do islamismo, os conflitos com os vizinhos, a força econômica do turismo.

Concordo que seria mais emocionante passear por toda a região do Cairo por conta própria. Porém, é uma cidade com trânsito pesado e os pontos interessantes ficam espalhados. Contar com um guia pra mostrar a cidade foi a decisão mais acertada.  Encontrei o meu numa postagem do antigo site mochileiros.com, Usama Orabi, lembro do nome até hoje. Ele tinha uma van só pra nós e teve a responsabilidade de preencher três dias com passeios.

A impressão que tive do primeiro guia que contratei na vida foi ótima, porque ele estava me esperando no aeroporto pacientemente, mesmo tendo tudo fugido do combinado. Eu havia perdido o vôo no Brasil e cheguei quase 3 dias atrasado. Fiquei preso em Roma tentando resolver uma enrascada que a antiga Passaredo havia me enfiado. A companhia aérea, que deveria me ajudar, só me ferrou. Descobri que um funcionário de aeroporto europeu, se não quiser resolver seu problema com um simples telefonema, ele não resolve. Resultado foi que processei a empresa depois, pedindo ressarcimento. Ganhei a causa, entraram com recuperação judicial e perdi o dinheiro.

Em Roma, ainda houve a estranha situação de eu estar na área de embarque, tentando conseguir passagem pra seguir pro Cairo. Enquanto isso, meu pai, indo ao meu encontro, estava na área internacional, sem termos como nos comunicar. E eu não sabia se ele sabia que eu não estaria lá quando ele chegasse.

Ele deveria chegar 2 dias depois de mim. Eu estaria no aeroporto, já ambientado e devidamente instalado. Chegou 4 horas antes, sem a bagagem, sem saber de guia, sem falar inglês. Seguiu-se então, uma daquelas cenas que viram memórias engraçadas depois: ele estava lá, me esperando com o guia e um outro sujeito curioso, havia comprado o visto na emigração, contatado minha mãe e resolvido sobre a mala extraviada. Estavam conversando, não sei sobre o quê, nem ele sabe. De alguma maneira, se entenderam.

Aliás, todo lugar que ele ia, o abordavam. Disseram que parecia com “Omar Sharif”, o ator. Toda fila ou todo lugar onde ele parava, de repente, alguém falava com ele em árabe. No Museu do Cairo, saí de uma das salas e ele estava num banco falando com outro árabe sobre o filho dele que brincava no chão. “Mas vocês falaram o que um pro outro?”, eu perguntava, “não sei” ele dizia.

Meu hotel era um prédio velho num beco, longe da rua, com uma portinha de entrada e uma plaquinha em cima dela, só. Tinha aqueles elevadores de porta sanfona, com um egípcio grandão de chapéu na recepção. Ele ficava em frente à praça Tahir, onde, uns três meses depois, desencadeariam-se as manifestações da Primavera Árabe. A mala do meu pai foi entregue no quarto, de madrugada, pra nossa surpresa.

Isso não vende, isso assusta.

A primeira noite no Cairo eu quis que fosse num jantar de barco pelo rio Nilo, faziam um alarde em como esse passeio era incrível, e se mostrou uma baita perda de tempo. A cidade vista do rio não é impressionante o bastante pra te prender no convés e as atrações musicais pra entreter o jantar eram só mais ou menos. Contudo, pude ver, pela primeira (e única) vez, ao vivo, uma dança do ventre no seu país de origem.

Nunca esqueço de uma cena, uma família árabe em uma das mesas, o marido comendo e bebendo muito e a esposa, de burca, comendo aos pouquinhos, puxando o tecido da boca com cuidado a cada garfada. Em certo ponto, conforme o marido foi ficando pra lá de Bagdá, ela foi se soltando e retirando a burca, aos poucos, pra comer à vontade. Quando o marido já estava quase dormindo na mesa, ela já até ria de gargalhar com os filhos, sem véu, sem nada. Houve um stand-up também (em árabe!) e só dava pra saber quando a piada terminava porque um sujeito da banda fazia o “tum-dum-ts”.

Os passeios pelo Cairo foram incríveis. Tanto porque era o início da viagem, quanto porque tudo era caos, gente, vestes estranhas, vendedores de pão sem fermento na rua, alto-falantes rezando o Alcorão, prédios naquele tom de reboco, lojas de burcas, placas em árabe. Me recordo do susto que tomei na primeira madrugada com o alto-falante chamando os fiéis à oração. Toda primeira vez num país de cultura não-ocidental é sempre uma overdose de estímulos. A vontade que dá é de ter mais tempo, mais dias, mais liberdade, poder descer da van e ficar andando no meio daquilo tudo, sem cronograma. Eu sempre me apaixonei mais pelo exótico.

Por vezes fico pensando se vigilância sanitária não é uma grande frescura nossa.

As Grandes Pirâmides do Egito dispensam apresentação e são tudo que a gente imaginou a vida toda. A sensação que fica ao se prostrar diante delas é pra vida toda. É possível vê-las, ao longe, em diversos momentos: do avião, na rodovia, do terraço das mesquitas. Mas, ali, com 1,8 m de altura em frente a um colosso de 49 andares, milhões de blocos de toneladas com 5 mil anos de existência, é uma sensação que imprime na alma. Eu vou morrer, meus descendentes vão se diluir, serei esquecido na existência do mundo, e elas estarão lá.

Sou péssimo em guardar informações. Leio muito, mas não retenho datas, números, nomes. Nessa visita te passam todos os dados possíveis sobre as pirâmides. Contudo, nenhuma referência sobre a simetria delas, o número de blocos, a distância que viajaram, o peso… nada disso impressiona mais do que elas apenas existirem. Pessoas comuns participaram da criação de tudo aquilo pra reverenciarmos hoje. É muito lindo isso, cara.

Eu entrei numa delas. É um corredor comprido e baixo onde se anda agachado e termina numa sala de pé direito alto, onde ficava o sarcófago. Existe uma inscrição grande na parede feita pelo primeiro arqueólogo entrou ali, no século XIX. É o que todo mundo te pergunta, depois, se você fez: “e aí, entrou na pirâmide?”. Eu queria ter conseguido tirar uma foto porque minhas memórias vivem nas fotos que possuo. Muito do que nunca fotografei, já esqueci que vivi.

A volta de camelo que oferecem ao redor das pirâmides é um clássico turistão: não fazer é deixar uma parte da experiência pra trás. Essas coisas muito clichês de viagem eu nunca evito fazer, sempre argumento que será, muito provavelmente, minha única oportunidade na vida. Um dos meus porta-retratos em casa sou eu e meu pai, roupas de gosto duvidoso, meu camelo urinando, e as pirâmides ao fundo.

A pirâmide de Saqqara, que é a parada mais afastada do tour que envolve as pirâmides, foi a primeira pirâmide construída na Terra. Mais impressionante ainda é que quem a construiu, Imhotep, é considerado o primeiro médico, engenheiro e arquiteto da História. Nomearam ela de Pirâmide Escalonada de Djoser. Certamente ele ficaria feliz de saber que o nome dele perdurou até os dias de hoje, mas triste de saber que reviveram ele como o vilão de “A Múmia”. E todo mundo agora acha que ele era careca.

Seguiram-se também inúmeras paradas que depois se misturam na memória. Lembro dos Colossos de Menon, duas figuras de pedra sentadas enormes, num campo vazio. Da estátua sem pernas de Ramsés II.

Começam a aparecer os primeiros sinais do assédio que o turista enfrenta no mundo árabe. Até um guarda com uma metralhadora me chamou num canto e pediu minha câmera pra tirar uma foto de uma grade. Paguei porque não se nega gorjeta pra alguém com uma metralhadora. Teve um sujeito dentro de um banheiro masculino que se ofereceu pra lavar as minhas mãos, recusei. Depois quis fechar minha torneira, eu fechei. Quis enxugar minhas mãos com lenços de papel, enxuguei. E aí, depois de não ter feito nada, pediu um trocado, por ter se oferecido. Não dei.

A Cidadela de Saladino é o segundo ponto mais visitado do Cairo. Faz parte de uma outra era da história, de cerca de 1100 D.C. Saladino foi o grande rival dos cruzados. Tomou Jerusalém das mãos deles e foi um grande líder militar. Salah el Din é famoso  por ter sido “libertador” de Jesuralém. Aqui ele é famoso porque é vilão nos filmes.

A fortaleza era onde ficavam as tropas pra confrontar os cristãos, hoje é uma mesquita. Foi a primeira que vi na vida, então, dela, me lembro bem. Aquele carpete vermelho, o monte de calçados na porta, as luminárias por todo o salão.

Lá tem um terraço onde se vê boa tarde da cidade do Cairo que é toda naquele tom de reboco de construção. Isso é porque existe um imposto pra quando a casa é pintada, então, ninguém termina a obra. Imposto é roubo desde o Egito Antigo.

No bairro cristão copta eu conheci igrejas com aquelas pinturas bizantinas tão bonitas. A Igreja Copta nada tem a ver com a Católica, mas eles mantêm algumas artes e relíquias cristãs que merecem ser vistas. Estão desaparecendo aos poucos no Egito, só 10% da população do Cairo é cristã. A lei proíbe casamentos com islâmicos e existe constante perseguição. Pude ver algo que eu sequer imaginava existir, uma verdadeira surpresa, em uma delas, no subsolo, está a casa onde a Sagrada Família teria passado algum tempo, na sua fuga para o Egito.

O mundialmente famoso museu do Cairo é outro dos locais onde é legar ter um guia. Todos eles parecem ser competentes egiptólogos, então, há muito o que se ouvir e se perguntar. Na minha visita duas coisas me marcaram. A primeira foi ver a máscara mortuária de ouro de Tutancamon. Capa de livros e revistas, é a relíquia mais famosa do tesouro e das maldições que tornaram um jovem faraó sem importância, no nome mais conhecido por nós do Egito Antigo. A outra era uma pedra enorme, com inscrições do início ao fim, e, lá no final, nas últimas três linhas, uma rasura. “Ali”, apontou o guia, “diz que os judeus não existiam, mas alguém rasurou”. Não lembro mais exatamente do que se tratava, mas o guia fez questão de parar um turista da américa do sul, pra mostrar uma prova física cabal, de que os judeus não eram um povo. Não seria a única vez em que eu veria essas faíscas saindo entre eles.

O mercado Khan el Khalili, esse é famoso, nem do nome eu esqueci. Todo turista em algum momento acaba sendo levado até lá. Sempre existiu e sempre vão existir aquelas vendas casadas nos passeios. Te levam num lugar onde o objetivo é que você compre algo e o guia ganhe uma comissão. Eu tinha uma raiva tremenda disso, hoje, aceito de coração aberto. Meu pai conta até hoje a história de como ele conseguiu comprar uma joiazinha, numa loja de ouro. Em como ele negociou com o árabe sem falar inglês, em como eles se entenderam e na encenação de desistir e sair andando e o árabe aceitando finalmente o preço e embalando o produto, contrariado. No momento seguinte, apertou a mão dele com um sorriso enorme.

Tem loja de papiro, onde você pode comprar quadros com pinturas incríveis. Tem loja de perfumes onde mostram o trabalho da criação dos frascos de vidro, um mais chamativo que o outro, e das essências e óleos. Trouxemos uma de flor de papiro, pra minha mãe.

Essas paradas pra comprar parecem uma espécie de extorsão disfarçada, mas, a verdade é que servem muito bem pra turistas que se interessam em gastar com compras. Realmente muito do que vende nesses lugares é caro, mas nunca é picaretagem, nunca você encontra igual mais barato lá na barraquinha. Hospedagem, alimentação e compras foram despesas que eu só fui passar dar valor ao longo dos anos.

Minha coleção de ingressos é mais valiosa que coleção de card de baseball americano.

Ainda sobre comprar no mundo árabe: a negociação faz parte da experiência. Acharia interessante se houvesse mais disso por aqui, essa liberdade de precificar e negociar de acordo com o comerciante e não tão controlado pelo Estado. Por vezes, a experiência da compra é mais marcante do que o próprio produto. O chato é que todas as vezes será assim, do imã de geladeira ao tapete fino. Pra mim, a fé e as leis religiosas, tão presentes na cultura egípcia, agem como uma malha social que contém a degradação do comportamento humano. Então, no comércio, eles não quebram as regras da legalidade, o que eles fazem é flexibilizá-las. Você não será roubado ou enganado, mas será pressionado quase no limite da extorsão, enquanto a negociação ainda estiver valendo. Vira e mexe aparecem placas nas portas dos estabelecimentos escrito “no harassment” que quer dizer que ali não tem assédio. Você entra, e é a mesma coisa.

Por um lado, quando se pede pra ver um item numa loja, o vendedor tira todos da parede e desmonta a loja toda pra você – dificilmente ele perde a venda. Por outro, chega uma hora que se evita entrar nos estabelecimentos pra não encarar essa abordagem. Não sei dizer se o faturamento deles não seria bem maior se agissem de uma forma mais comedida, mas, pensando bem, são comerciantes bem sucedidos há milhares de anos. Eles devem saber uma coisa ou duas a respeito.

“Guardei o cartão do hotel no Cairo. Pensão Roma, coincidentemente fiquei preso em Roma 2 dias por causa de problemas com as passagens aéreas. Na próxima vou reservar algum chamado Hotel Maldivas.”.
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